Lei de responsabilidade fiscal: impactos na qualidade do gasto e justiça social

Impactos da Lei de Responsabilidade Fiscal na gestão pública, promovendo equilíbrio econômico e justiça distributiva.

Lei de responsabilidade fiscal: impactos na qualidade do gasto e justiça social

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completou 25 anos, mas sua aplicação plena ainda é promessa distante. A norma, instituída para assegurar planejamento e controle nas finanças públicas, frequentemente é reduzida a uma ferramenta contábil desconectada da realidade social.

A efetividade da LRF depende da articulação entre gestão fiscal responsável, justiça distributiva e garantia de direitos fundamentais, pilares que ainda enfrentam entraves como opacidade orçamentária e alocação arbitrária de recursos públicos.

Responsabilidade fiscal além das planilhas

A LRF, desde sua criação pela LC nº 101/2000, estabeleceu parâmetros para o equilíbrio entre receitas e despesas, obrigando o poder público a planejar com transparência. O artigo 1º, §1º, traz o conceito central de gestão fiscal planejada, com metas e limites. Contudo, o que se verifica na prática está longe de ser um cumprimento rigoroso.

As emendas de relator, conhecidas como RP 9, escancaram essa realidade. Desprovidas de critérios técnicos e embasamento público, elas invertem a lógica da política fiscal: em vez de planejamento racional, privilegiam arranjos políticos. Um exemplo contundente são os cerca de R$ 22,9 bilhões em emendas parlamentares alocadas à saúde em 2024, que corresponderam a 60% das emendas pagas no ano. A maioria dessas não passou por avaliação de impacto, nem priorizou áreas críticas como leitos de saúde mental e obstetrícia, já deficitárias.

Esse tipo de prática desvia o pano de fundo da LRF, que deveria estar ancorado na promoção dos direitos fundamentais e na redução das desigualdades regionais. O planejamento fiscal precisa dialogar com a realidade social e evidências concretas, algo que raramente se verifica nas disputas orçamentárias entre Executivo e Legislativo.

O orçamento público como instrumento de justiça

O orçamento não é apenas uma peça técnica. Ele reflete prioridades políticas e define o modo pelo qual o Estado distribui bens e oportunidades. Como destaca Fernando Scaff, a justiça fiscal é alcançada quando o sistema tributário é progressivo e os recursos arrecadados são distribuídos com equidade.

Hoje, o Brasil ainda opera sob uma estrutura regressiva, onde a maior carga tributária recai sobre os mais pobres. Ao mesmo tempo, os gastos públicos seguem alocados com pouca racionalidade. O resultado disso é um orçamento que, em vez de promover justiça distributiva, acentua desigualdades.

A centralidade do orçamento está prevista no artigo 3º, III, da Constituição. A erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais devem orientar toda escolha orçamentária. Em vez disso, o que se vê é uma disputa por cotas protagonizada por governantes e parlamentares, em que os princípios de legalidade, eficiência e impessoalidade são, muitas vezes, secundarizados.

A ausência de critérios uniformes transforma o orçamento em um território altamente influenciado por interesses particulares. Essa realidade desvirtua o papel da LRF e enfraquece sua aplicabilidade como mecanismo de proteção social e desenvolvimento sustentável.

Participação popular e a simulação da transparência

Apesar do avanço legal contido nos artigos 48 e 48-A da LRF, que asseguram instrumentos de transparência e participação nas fases de elaboração e execução do orçamento, a prática revela simulações com pouca efetividade.

Audiências públicas mal divulgadas, disponibilização de dados brutos e linguagem inacessível são práticas comuns. O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) aponta que 67% da população se encontra no nível elementar, o que implica baixa capacidade de compreensão de textos e dados complexos. Isso revela a necessidade de investimentos em acessibilidade orçamentária, com linguagem clara e pedagogia fiscal voltada à inclusão digital e cognitiva da população.

O orçamento só poderá ser instrumento de cidadania quando puder ser compreendido e discutido por seus destinatários. Caso contrário, ele permanecerá como ferramenta de poder, inacessível à maioria da sociedade.

Diagnósticos concretos e omissões estruturais

O Tribunal de Contas da União (TCU) tem produzido auditorias que revelam os entraves à efetividade das políticas públicas. No Relatório de Auditoria TC 014.924/2023-4, foi constatada a evasão escolar na Rede Federal de Educação Profissional, acentuada por ausência de transporte escolar, alimentação deficiente e falhas na permanência dos estudantes.

Na área de saúde, o Acórdão TC-026.060/2017-5 destacou a fragilidade nos serviços emergenciais do SUS, em São Luís (MA), em contraponto ao alto volume de repasses federais. Os dados mostram que mesmo recursos vultosos podem não se traduzir em bem-estar se houver distorções na execução e falta de avaliação contínua.

Esses diagnósticos evidenciam uma dissonância profunda entre recursos liberados e resultados obtidos. A não consideração de variáveis sociais como renda, gênero, cor e segurança alimentar torna os planejamentos uma abstração incapaz de gerar transformações reais.

Integração entre planejamento e orçamento

O planejamento público no Brasil sofre com uma fragmentação crônica entre ações de curto prazo e metas estruturais. O ciclo orçamentário, que deveria funcionar como retroalimentador das políticas públicas, ainda é tratado como mera formalidade, sem considerar a realidade de sua implementação.

A LRF prevê que o projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) deve estar adequadamente alinhado ao Plano Plurianual (PPA) e à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O art. 5º, §4º, proíbe dotações genéricas e sem finalidade especificada, exigindo clareza e especificidade. Ainda assim, repetem-se os casos em que orçamentos são apresentados com rubricas intangíveis e subjetivas, que burlam o acompanhamento preciso dos gastos.

É essencial retomar a lógica do planejamento interseccional, que articule metas mensuráveis, indicadores consistentes, feedback contínuo e participação social qualificada. A racionalidade no gasto público passa pela técnica, mas exige, principalmente, compromissos democráticos ligados ao bem-estar coletivo.

Município como elo entre recurso e direito

Estados e União concentram poderes decisórios e recursos, mas é nos municípios que direitos se concretizam. Educação, saúde e assistência social são serviços cuja prestação diária está sob responsabilidade de gestões locais. Por isso, o ciclo orçamentário municipal se tornou espaço estratégico para reverter desigualdades e investir de forma representativa.

Com acesso direto à realidade local, prefeitos e secretários têm a oportunidade de formular políticas baseadas em evidências e necessidades reais. Contudo, faltam capacidade técnica, estrutura administrativa e canais de escuta da população. Ao mesmo tempo, há uma necessidade urgente de ampliar o controle social e a participação cidadã, com formação política e orçamentária nos territórios.

Boas práticas de orçamento participativo, experiências de co-planejamento e avaliação participativa têm sido utilizadas em algumas cidades, ainda que de maneira tímida. Se institucionalizadas, representam um passo importante para a construção de um orçamento que, de fato, atenda ao interesse público.

Esse contexto exige gestores comprometidos, fiscalizações eficazes e cidadãos informados. A LRF segue sendo uma peça fundamental, mas o desafio está em traduzi-la em ações concretas, que priorizem a qualidade do gasto, a justiça distributiva e os direitos sociais. Um orçamento transparente, participativo e responsável é condição indispensável para uma democracia verdadeiramente inclusiva.

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Redação
Redação jornalística da Elias & Cury Advogados Associados.

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